A
NEGAÇÃO DA JUSTIÇA - artigo de J. R. Guzzo
A
entrada do advogado Luís Roberto Barroso para o Supremo Tribunal Federal, na
vaga mais recente aberta na corte máxima da Justiça brasileira, é uma decisão
que dá medo.
Não
há nada de errado quanto ao homem em si. Tanto quanto se saiba, trata-se de um
bom cidadão, bom advogado e boa pessoa. Tem experiência e nunca foi reprovado,
muito menos por duas vezes seguidas, num concurso público. O problema do
ministro Barroso não está em quem ele é. Está no que ele pensa. Seu modo de
olhar para a vida, para a Justiça e para a relação entre uma e outra é
profundamente perturbador num Brasil onde o crime violento se torna a cada dia
uma atividade mais segura para quem o pratica. A presença de Barroso no STF
ajuda, e com o tempo talvez garanta, que o tribunal onde se molda o figurino
usado todos os dias nas decisões tomadas pela Justiça se enterre ainda mais no
esforço geral que vem sendo feito, há anos, para criar um país sem castigo.
Como
assim? A corte de Justiça mais alta da República, onde onze doutores e seus 3
000 auxiliares se orgulham de fazer respeitar cada átomo das leis brasileiras,
seria um polo do mal? Não foram condenados ali ainda há pouco, no mensalão,
malfeitores poderosos? Acontece que as decisões do nosso tribunal supremo, dia
após dia, depravam ! o direito essencial do cidadão de ser protegido contra o
crime. Vamos aos fatos. Encontra-se em liberdade no Pará o indivíduo que se faz
conhecer pelo apelido de "Taradão" - um certo Regivaldo Galva -
condenado em júri popular como mandante do assassinato da missionária Dorothy
Mae Stang, americana que se naturalizou brasileira, em fevereiro de 2005. A
irmã Dorothy era uma senhora de 73 anos; seus matadores acharam necessário
meter-lhe seis balas para resolver o problema. Oito anos já se passaram desde
que o crime foi cometido; "Taradão" continua livre, porque a pureza
jurídica do STF, por decisão do Ministro Marco Aurélio Mello, achou que durante
esse tempo todo ele não teve seus direitos de defesa plenamente respeitados.
Acusado de ser seu parceiro no crime, o fazendeiro Vitalmiro Moura, vulgo
"Bida", já passou por três júris e foi condenado em dois; todos foram
anulados, e o homem caminha agora para seu quarto julgamento. "Bida",
segundo o STF, não teve "tempo adequado" para preparar a sua defesa -
isso num crime praticado em 2005.
Não
se trata de aberrações que só acontecem de vez em quando. É a regra. Mais
exemplos? Perfeitamente. O médico paulista Roger Abdelmassih, condenado a 278
anos de prisão pela Justiça criminal de São Paulo em novembro de 2010 sob
acusação de ter praticado 52 estupros e atentados violentos ao pudor contra
suas próprias clientes, foi solto por decisão do Ministro Gilmar Mendes. Sua
excelência julgou que o estuprador serial deveria recorrer em liberdade da
sentença, pois não representava mais perigo nenhum; como tivera seu registro
cassado e não podia mais exercer a medicina, não teria oportunidade de
continuar estuprando, já que não iria mais dispor de um consultório para
estuprar clientes. Pouco depois, no começo de 2011, Abdelmassih fugiu e até
hoje não foi encontrado. O cidadão italiano Cesare Battisti, condenado à prisão
perpétua por quatro homicídios que cometeu na Itália, e apresentado no Brasil
como "refugiado político de esquerda", foi outro dos grandes
agraciados recentes do STF. Battisti fora condenado, em processo perfeitamente
legal, pela Justiça italiana-que deve ser, por baixo, umas 500 vezes melhor que
a brasileira. Teve todos os seus direitos estritamente respeitados, e a mais
plena liberdade de defesa. Naturalmente, ao descobrir que estava preso no
Brasil (por entrada ilegal no país), a Itália pediu sua extradição, e em 2009 o
caso foi para o STF. Houve, é lógico, grande irritação do então presidente Lula
e de seu ministro da Justiça, Tarso Genro - que considerou o pedido um
"desaforo ao Brasil e à democracia". O STF, no fim, entregou a
decisão final a Lula, sabendo perfeitamente o que ia acontecer, e de fato
aconteceu: no seu último dia na Presidência. Lula decidiu que Battisti iria
ficar por aqui. Seguiu-se a habitual simulação de altas considerações jurídicas
por parte dos ministros (o seu acórdão era um insulto ao bom-senso: tinha quase
700 páginas) e finalmente, em junho de 2011. suas excelências colocaram
Battisti na rua, onde permanece livre até hoje.
O
prodígio mais recente da Suprema Corte brasileira aconteceu agora, no início
deste último mês de junho, quando se deu como "extinto" qualquer tipo
de processo penal pelo assassinato do estudante Edison Tsung Chi Hsueh, morto
por afogamento durante um trote na Faculdade de Medicina da USP, a mais
celebrada do Brasil. O crime foi cometido, acredite-se ou não, em 1999, e
estava sem punição até agora, catorze anos depois; daqui para diante, ficará
impune para sempre. Em 2006, após sete anos de enganação judicial, um outro
excelso tribunal, o STJ, trancou a ação penal contra os réus denunciados pelo
homicídio, impedindo que fossem a julgamento pelo júri - os hoje médicos
Guilherme No vita Garcia, Frederico Carlos Jana Neto, Luís Eduardo Passarei li
Tirico e Ari de Azevedo Marques Neto. O relator do processo, ministro Paulo
Gallotti, concluiu que tudo foi "uma brincadeira de muito mau gosto".
Agora, finalmente, o STF decidiu que a regra é clara: para que a lei seja
respeitada em toda a sua majestade, o assassínio de Tsung jamais deverá ser
julgado. Uma salva de palmas para os doutores Novita Garcia, Jana Neto, Tirico
e Azevedo Marques, que hoje oferecem seus serviços nos Facebooks da vida, e
estão completamente livres para clinicar. "Eu quero dizer que este
tribunal está simplesmente impedindo o esclarecimento de um crime
bárbaro", protestou o próprio presidente do STF, Joaquim Barbosa. Está,
sim - e daí? Vive salvando o couro de todo mundo, de "Taradão" aos
ilustres médicos paulistas. Continuará a salvar: histórias como as contadas
acima fazem parte de uma lista sem fim.
E
o novo ministro, Roberto Barroso - por que ter medo do homem, se ele não
participou de nenhuma dessas decisões? Porque o doutor Barroso acha que isso
tudo ainda é pouco. Na sua opinião, o problema da Justiça brasileira é que as
leis são rigorosas demais e as punições para os criminosos, nos raros casos em
que alguém é punido, são realmente um exagero. As sentenças do mensalão, por
exemplo, foram uma decisão "fora da curva" - segundo ele, o STF
"endureceu sua jurisprudência", ou seja, deixou de lado, por um
instante, sua tradição de amolecer diante do crime. As outras convicções do
novo ministro, é claro, vão na mesma linha. Ao defender Cesare Battisti - sim.
foi ele o advogado do quádruplo assassino no processo de extradição -, afirmou
que suas condenações pela Justiça da Itália não poderiam ser levadas em
consideração. Barroso chegou a dizer que a democracia italiana, nos anos 70,
era "muito mais truculenta do que a ditadura brasileira" - ou que no
combate ao terrorismo de esquerda na Itália "morreu mais gente" que
no Brasil do AI-5. É uma falsificação grosseira dos fatos - na Itália, durante
a época do terrorismo, morreram 2 000 pessoas, mas quase todas foram
assassinadas pelos próprios terroristas, e não pela "repressão". As
duras prisões preventivas na Itália, de até oito anos, eram rigorosamente
previstas em lei, e não inventadas pelo governo. Enquanto isso, no Brasil, a
Justiça estava proibida de apreciar qualquer ato cometido por autoridades
militares. Será que agora, como ministro do STF, Barroso continua pensando que
o AI-5 respeitava mais o direito de defesa do que a legislação da Itália?
O
novo ministro também reclama contra o número alto demais de pessoas pobres nas
prisões. Não teria ocorrido ao doutor Barroso que há muito mais pobres do que
ricos nas prisões porque há muito mais pobres do que ricos no Brasil? O novo
ministro acha que só deveriam ir para a cadeia autores de assassinatos ou
estupros; todos os demais ficariam em "prisão domiciliar". É contra,
naturalmente, a redução da maioridade penal, hoje de 18 anos. Nada disso,
claro, está só na cabeça do doutor Barroso. Ao contrário, é o pensamento que
predomina entre seus colegas do STF, a Ordem dos Advogados do Brasil e a
maioria dos desembargadores, juízes e promotores brasileiros - somados ao
Congresso, onde se fabricam todos os truques legais desenhados para proteger os
criminosos, ao aumentar ao máximo seus direitos de defesa, as atenuantes para
seus crimes e os benefícios para os que acabam condenados. A consequência
prática desse modo de ver a vida é a seguinte: no Brasil é permitido matar à
vontade, pois para que a lei penal seja perfeitamente cumprida, como exigem os
magistrados, será indispensável deixar sem punição quem matou. Está na moda,
hoje em dia, chamar essa aberração de "garantismo" - doutrina que se
propõe a garantir à defesa virtualmente qualquer desculpa legal que invente
para salvar o réu. Na verdade, é apenas outra palavra para dizer
"impunidade".
Soma-se
a isso o entendimento, cada vez mais aceito em nosso mundo jurídico e político,
de que a ideia da responsabilidade individual, em pleno vigor em qualquer país
civilizado, se tornou obsoleta no Brasil. Aqui, segundo nossos magistrados e
legisladores, o indivíduo não deve ser considerado responsável por seus atos.
Quando mata, rouba ou sequestra, a culpa não é realmente dele. É da pobreza em
que nasceu, da família que não o apoiou, da publicidade que estimula o consumo
de coisas que não pode comprar, dos traumas que sofreu, das boas escolas que
não teve, dos empregos mal pagos, das vítimas que possuem dinheiro ou objetos
desejados por ele, do alto preço dos jeans, tênis e iPhones - enfim, de tudo e
de todos, menos dele. E os milhões de brasileiros que têm origens e condições
de vida exatamente iguais, mas jamais cometem crime algum - seriam anormais?
Não há resposta para observações como essa.
O
resultado está à nossa volta, todos os dias. Vivemos num país que tem 50 000
homicídios por ano - o equivalente, no mesmo período, ao número de mortos na
guerra civil na Síria, a mais selvagem em curso no mundo de hoje. Para cada 100
crimes cometidos em São Paulo e investigados pela polícia no primeiro
quadrimestre deste ano, apenas três prisões foram feitas. No primeiro trimestre
de 2013, houve 101 latrocínios só em São Paulo - mais de um por dia. Ainda em
São Paulo, e só ali. 50 000 criminosos liberados para comemorar o Natal ou
festejar o Dia das Mães não voltaram à prisão nos últimos dez anos. Em três
dias, no Brasil de hoje, mata-se uma quantidade de pessoas igual à que os
agentes do governo são acusados de ter matado nos 21 anos de regime militar.
Temos uma "Comissão Nacional da Verdade" para investigar 300 mortes
de "militantes de esquerda" ocorridas quarenta anos atrás (outros 120
cidadãos foram assassinados pelos grupos de "luta armada"), mas não
se investigam, não para valer, os 100 homicídios cometidos nas últimas 24 horas.
A selvageria dos assaltantes vai de recorde em recorde; deram, agora, para
incendiar vítimas que têm pouco dinheiro no bolso ou para assassinar bebês de 2
anos de idade, como aconteceu em junho num assalto em Contagem, ao lado de Belo
Horizonte. Todos os estudos internacionais demonstram uma espetacular redução
do crime na maior parte do mundo; determinados delitos, como assalto à mão
armada, furto de carros e roubo a bancos, estão simplesmente em via de extinção
em muitos países. O Brasil vai na direção exatamente oposta.
Estimular
essa barbaridade toda com leis que multiplicam ao infinito os direitos de
assassinos e dificultam ao extremo sua punição, como fazem os poderes
Judiciário, Legislativo e Executivo, é agredir a democracia e a Constituição
brasileira, que garantem a todos, e acima de tudo, o direito à vida. É negar a
liberdade, ao fazer com que o cidadão corra o risco de morrer todas as vezes
que sai de casa, ou mesmo quando não sai. O doutor Barroso, seus colegas e quem
mais pensa e age como eles imaginam que seu "garantismo" ajuda a
evitar a condenação de inocentes. Só conseguem criar, na vida real, a garantia
para os culpados. É ou não para ter medo?
Nenhum comentário:
Postar um comentário