Corrupção
Marcos Valério revela
os segredos do mensalão e envolve Lula
O empresário Marcos
Valério, apontado como o operador do esquema, diz que, em troca do seu
silêncio, recebeu garantias do PT de uma punição branda. Condenado pelo STF por
vários crimes, cujas penas podem chegar a 100 anos de prisão, ele revela que o
ex-presidente Lula sabia de tudo e que o caixa para subornar políticos foi
muito maior: 350 milhões de reais
Faltavam catorze minutos para as 7 da manhã da última
quarta-feira quando o empresário Marcos Valério, o pivô financeiro do mensalão,
parou seu carro em frente a uma escola, em Belo Horizonte. Alvo das mais
pesadas condenações no julgamento que está em curso no Supremo Tribunal Federal
(STF), ele tem cumprido religiosamente a tarefa de levar o filho todos os dias
ao colégio. Desce do carro, acompanha o menino até o portão e se despede com um
beijo no rosto. Chega mais cedo para evitar ser visto pelos outros pais e
alunos e vai embora depressa, cabisbaixo. "O PT me transformou em
bandido", desabafa. Valério sabe que essa rotina em breve será
interrompida. Ele é o único dos 37 réus do mensalão que não tem um átimo de
dúvida sobre seu futuro. Na semana passada, o publicitário foi condenado por
lavagem de dinheiro, crime que acarreta pena mínima de três anos de prisão.
Computadas as punições pelos crimes de corrupção ativa e peculato, já
decididas, mais evasão de divisas e formação de quadrilha, ainda por julgar, a
sentença de Marcos Valério pode passar de 100 anos de reclusão. Mesmo com todas
as atenuantes da lei penal brasileira, não é improvável que ele termine seus
dias na cadeia. Valério tem culpa no cartório, mas fica evidente que ele está
carregando sobre os ombros uma carga penal que, por justiça, deveria estar mais
bem distribuída entre patentes bem mais altas na hierarquia do mensalão. É isso
que mais martiriza a alma de Valério neste momento, uma dor que ele tenta
amenizar lembrando, sempre que pode, que seu silêncio sobre os responsáveis
maiores acima dele está lhe custando muito caro.
Apontado como o responsável pela engenharia financeira que
possibilitou ao PT montar o maior esquema de corrupção da história, Valério
enfrenta um dilema. Nos últimos dias, ele confidenciou a pessoas próximas
detalhes do pacto que havia firmado com o partido. Para proteger os figurões,
conta que assumiu a responsabilidade por crimes que não praticou sozinho e
manteve em segredo histórias comprometedoras que testemunhou quando era o "predileto"
do poder. Em troca do silêncio, recebeu garantias. Primeiro, de impunidade.
Depois, quando o esquema teve suas entranhas expostas pela Procuradoria-Geral
da República, de penas mais brandas. Valério guarda segredos tão estarrecedores
sobre o mensalão que não consegue mais reter só para si - mesmo que agora,
desiludido com a falsa promessa de ajuda dos poderosos que ele ajudou, tenha um
crescente temor de que eles possam se vingar dele de forma ainda mais cruel. Os
segredos de Valério, se revelados, põem o ex-presidente Lula no epicentro do
escândalo do mensalão. Sim, no comando das operações. Sim, Lula, que, fiel a
seu estilo, fez de tudo para não se contagiar com a podridão à sua volta, mesmo
que isso significasse a morte moral e política de companheiros diletos. Valério
teme, e fala a pessoas próximas, que se contar tudo o que sabe estará assinando
a pior de todas as sentenças - a de sua morte: "Vão me matar. Tenho de
agradecer por estar vivo até hoje".
Sua mulher, Renilda Santiago, já tentou o suicídio três
vezes. Há duas semanas, ela telefonou a uma amiga para dizer que iria a um
reduto do tráfico encravado na região central de Belo Horizonte comprar uma
arma. Avisou que havia decidido dar um tiro na cabeça. Renilda está mergulhada
em crise aguda de depressão. Os dois filhos do casal vivem dramas à parte.
Meses atrás, o menino, de 11 anos, tentou fazer um teste de admissão em uma escola mais perto de casa,
mas a diretora nem deixou o garoto começar a prova. A direção da escola não
queria entre seus alunos o filho de Marcos Valério. A filha mais velha, de 21
anos, passou por constrangimentos cruéis. Em um debate na faculdade de
psicologia, o assunto escolhido pelos colegas foi justamente o comportamento do
pai dela. Humilhada, ela saiu da sala. Chega a ser assustador, mesmo que
previsível, que as pessoas esqueçam a mais consagrada prática cristã,
civilizada e jurídica - a de que os filhos não devem pagar pelos erros dos
pais. Marcos Valério sofre de síndrome do pânico e praticamente não prega os
olhos à noite. Sobre o PT e seus antigos parceiros ele vem dizendo: "Eu
detesto esse pessoal. Esse povo acabou com a minha vida, me fez de um tamanho
que eu não sou. O PT me fez de escudo, me usou como um boy de luxo. Mas eles se
ferraram porque agora vai todo mundo para o ralo". O medo ainda constrange
Marcos Valério a limitar suas revelações a pessoas próximas. Até quando?
Mensalão
"O caixa do PT foi
de 350 milhões de reais"
A acusação do Ministério Público Federal sustenta que o
mensalão foi abastecido com 55 milhões de reais tomados por empréstimo por
Marcos Valério junto aos bancos Rural e BMG, que se somaram a 74 milhões
desviados da Visanet, fundo abastecido com dinheiro público e controlado pelo
Banco do Brasil. Segundo Marcos Valério, esse valor é subestimado. Ele conta
que o caixa real do mensalão era o triplo do descoberto pela polícia e
denunciado pelo MP. Valério diz que pelas arcas do esquema passaram pelo menos
350 milhões de reais. "Da SMP&B vão achar só os 55 milhões, mas o
caixa era muito maior. O caixa do PT foi de 350 milhões de reais, com dinheiro
de outras empresas que nada tinham a ver com a SMP&B nem com a DNA",
afirma o empresário. Esse caixa paralelo, conta ele, era abastecido com
dinheiro oriundo de operações tão heterodoxas quanto os empréstimos fictícios
tomados por suas empresas para pagar políticos aliados do PT. Havia doações
diretas diante da perspectiva de obter facilidades no governo. "Muitas
empresas davam via empréstimos, outras não." O fiador dessas operações,
garante Valério, era o próprio presidente da República.
Lula teria se empenhado pessoalmente na coleta de dinheiro
para a engrenagem clandestina, cujos contribuintes tinham algum interesse no
governo federal. Tudo corria por fora, sem registros formais, sem deixar nenhum
rastro. Muitos empresários, relata Marcos Valério, se reuniam com o presidente,
combinavam a contribuição e em seguida despejavam dinheiro no cofre secreto
petista. O controle dessa contabilidade cabia ao então tesoureiro do partido,
Delúbio Soares, que é réu no processo do mensalão e começa a ser julgado nos
próximos dias pelos crimes de formação de quadrilha e corrupção ativa. O papel
de Delúbio era, além de ajudar na administração da captação, definir o nome dos
políticos que deveriam receber os pagamentos determinados pela cúpula do PT,
com o aval do ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, acusado no processo como o
chefe da quadrilha do mensalão: "Dirceu era o braço direito do Lula, um
braço que comandava". Valério diz que, graças a sua proximidade com a
cúpula petista no auge do esquema, em 2003 e 2004, teve acesso à contabilidade
real. Ele conta que a entrada e a saída de recursos foram registradas
minuciosamente em um livro guardado a sete chaves por Delúbio. Pelo seu relato,
o restante do dinheiro desse fundão teve destino semelhante ao dos 55 milhões
de reais obtidos por meio dos empréstimos fraudulentos tomados pela DNA e pela
SMP&B. Foram usados para remunerar correligionários e aliados. Os valores
calculados por Valério delineiam um caixa clandestino sem paralelo na política.
Ele fala em valores dez vezes maiores que a arrecadação declarada da campanha
de Lula nas eleições presidenciais de 2002.
O presidente
"Lula era o
chefe"
A ira de Marcos Valério desafia a defesa clássica do
ex-presidente Lula de que não sabia do mensalão e nada teve a ver com o esquema
arquitetado em seu primeiro mandato. Com a segurança de quem transitava com
desenvoltura pelos gabinetes oficiais, inclusive os palacianos, e era
considerado um parceiro preferencial pela cúpula petista, Valério afirma que
Lula "comandava tudo". Em sua própria defesa, diz que como operador
dos pagamentos não passava de um "boy de luxo" de uma estrutura que
tinha o então presidente no topo da cadeia de comando. "Lula era o
chefe", repete Valério às pessoas mais próximas. A afirmação se choca com
todas as versões apresentadas por Lula desde que o esquema foi descoberto, em
2005. Primeiro, escudou-se no argumento de que tudo não passou do uso de
dinheiro "não contabilizado" que havia sobrado das campanhas
políticas, prática suprapartidária e recorrente na política brasileira - não
por acaso tem sido essa a estratégia de defesa dos mensaleiros no STF. Num
segundo momento, Lula se disse traído e pediu desculpas à nação em rede de
televisão.
A rota de fuga de Lula evoluiu mais tarde para a negação
completa, com a tese nefelibata de que o mensalão nunca existiu, tendo sido
apenas uma armação das elites para abreviar seu mandato. A narrativa de Valério
coloca Lula não apenas como sabedor do que se passava, mas no comando da
operação. Valério não esconde que se encontrou com Lula diversas vezes no
Palácio do Planalto. Ele faz outra revelação: "Do Zé ao Lula era só descer
a escada. Isso se faz sem marcar. Ele dizia vamos lá embaixo, vamos". O Zé
é o ex-ministro José Dirceu, cujo gabinete ficava no 4º andar do Palácio do
Planalto, um andar acima do gabinete presidencial. A frase famosa e enigmática
de José Dirceu no auge do escândalo - "Tudo que eu faço é do conhecimento
de Lula" - ganha contornos materiais depois das revelações de Valério
sobre os encontros em palácio. Marcos Valério reafirma que Dirceu não pode nem
deve ser absolvido pelo Supremo Tribunal, mas faz uma sombria ressalva.
"Não podem condenar apenas os mequetrefes. Só não sobrou para o Lula
porque eu, o Delúbio e o Zé não falamos", disse, na semana passada, em Belo
Horizonte. Indagado, o ex-presidente não respondeu.
Pacto
"Meu contato era o
Okamotto"
Há menos de dois meses, VEJA revelou a existência de
encontros secretos entre Marcos Valério e Paulo Okamotto, petista estrelado que
desempenha a tarefa de assessor financeiro, ou tesoureiro, de Lula. Procurado
para explicar por que se reunia com o principal operador do mensalão, Okamotto
disse que os encontros serviam apenas para discutir política. Não, não era bem
assim. Marcos Valério tinha um pacto com o PT, e Paulo Okamotto era o fiador
desse pacto. "Eu não falo com todo mundo no PT. O meu contato com o PT era
o Paulo Okamotto", disse Valério em uma conversa reservada dias atrás. É o
próprio Valério quem explica a missão de Okamotto: "O papel dele era
tentar me acalmar". O empresário conta que conheceu o Japonês, como o
petista é chamado, no ápice do escândalo. Valério diz que, na véspera de seu
primeiro depoimento à CPI que investigava o mensalão, Okamotto o procurou.
"A conversa foi na casa de uma funcionária minha. Era para dizer o que eu
não devia falar na CPI", relembra. O pedido era óbvio. Okamotto queria
evitar que Valério implicasse Lula no escândalo. Deu certo durante muito tempo.
Em troca do silêncio de Valério, o PT, por intermédio de Okamotto, prometia
dinheiro e proteção. A relação se tornaria duradoura, mas nunca foi pacífica.
Em momentos de dificuldade, Okamotto era sempre procurado. Quando Valério foi
preso pela primeira vez, sua mulher viajou a São Paulo com a filha para falar
com Okamotto. Renilda Santiago queria que o assessor de Lula desse um jeito de
tirar seu marido da cadeia. Disse que ele estava preso injustamente e que o PT
precisava resolver a situação. A reação de Okamotto causa revolta em Valério
até hoje. "Ele deu um safanão na minha esposa. Ela foi correndo para o
banheiro, chorando." O empresário jura que nunca recebeu nada do PT. Já a
promessa de proteção, segundo Valério, girava em torno de um esforço que o
partido faria para retardar o julgamento do mensalão no Supremo e, em último
caso, tentar amenizar a sua pena. "Prometeram não exatamente absolver, mas
diziam: ‘Vamos segurar, vamos isso, vamos aquilo’... Amenizar", conta. Por
muito tempo, Marcos Valério acreditou que daria certo. Procurado, Okamotto não
se pronunciou.
Poder
"O Delúbio dormia
no Alvorada"
Dos tempos em que gozava da intimidade do poder em Brasília,
Marcos Valério diz guardar muitas lembranças. Algumas revelam a desenvoltura
com que personagens centrais do mensalão transitavam no coração do governo Lula
antes da eclosão do maior escândalo de corrupção da história política do país.
Valério lembra das vezes em que Delúbio Soares, seu interlocutor frequente até
a descoberta do esquema, participava de animados encontros à noite no Palácio
da Alvorada, que não raro servia de pernoite para o ex-tesoureiro petista.
"O Delúbio dormia no Alvorada. Ele e a mulher dele iam jogar baralho com
Lula à noite. Alguma vez isso ficou registrado lá dentro? Quando você quer
encontrar (alguém), você encontra, e sem registro." O operador do mensalão
deixa transparecer que ele próprio foi a uma dessas reuniões noturnas no
Alvorada. Sobre sua aproximação com o PT, Valério conta que, diferentemente do
que os petistas dizem há sete anos, ele conheceu Delúbio durante a campanha de
2002. Quem apresentou a ele o petista foi Cristiano Paz, seu ex-sócio, que
intermediava uma doação à campanha de Lula. A primeira conversa foi em Belo
Horizonte, dentro de um carro, a caminho do Aeroporto da Pampulha. Nessa
ocasião, conta, Delúbio lhe pediu ajuda. "Ele precisava de uma empresa
para servir de espelho para pegar um dinheiro." A parceria deu certo e
desaguou no mensalão. Hoje, os dois estão no banco dos réus. Valério se sente
injustiçado. Especialmente na parte da acusação que diz respeito ao desvio de
recursos públicos do Banco do Brasil. Ele jura que esse dinheiro não caiu no
caixa da corrupção. "No processo tem todas as notas fiscais que comprovam
que esse dinheiro foi gasto com publicidade. Não estou falando que não mereço
um tapa na orelha. Não é isso. Concordo em ser condenado por aquilo que eu
fiz."
Empréstimo
"O banco ia
emprestar dinheiro para uma agência quebrada?"
Os ministros do STF já consideraram fraudulentos os
empréstimos concedidos pelo Banco Rural às agências de publicidade que
abasteceram o mensalão. Para Valério, a decisão do Rural de liberar o dinheiro
- com garantias fajutas e José Genoino e Delúbio Soares como fiadores - não foi
um favor a ele, mas ao governo Lula. "Você acha que chegou lá o Marcos
Valério com duas agências quebradas e pediu: ‘Me empresta aí 30 milhões de
reais pra eu dar pro PT’? O que um dono de banco ia responder?" Valério se
lembra sempre de José Augusto Dumont, então presidente do Rural. "O Zé
Augusto, que não era bobo, falou assim: ‘Pra você eu não empresto’. Eu
respondi: ‘Vai lá e conversa com o Delúbio’. " A partir daí a solução foi
encaminhada. Os empréstimos, diz Valério, não existiriam sem o aval de Lula e
Dirceu. "Se você é um banqueiro, você nega um pedido do presidente da
República?" Foram essas mesmas credenciais palacianas, segundo ele, que
lhe abriram as portas no Banco Central para interceder pela suspensão da liquidação
extrajudicial do Banco Mercantil de Pernambuco, que interessava ao Rural.
Valério foi destacado para cuidar do assunto em Brasília. Uma tarefa executada
com todas as facilidades e privilégios. "Valério chegou lá no Banco
Central e foi atendido. Você acha que o Banco Central receberia um imbecil
qualquer, dono de uma agência de publicidade quebrada?"
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