terça-feira, 16 de agosto de 2011

PODRES PODERES


OS CORONÉIS DE RONCALLI






As violações dos direitos humanos no sistema prisional capixaba ganharam proporções nunca vistas durante os oitos anos do governo Paulo Hartung. As denúncias romperam as fronteiras brasileiras, cruzaram o Atlântico e foram parar na ONU, em Genebra. Em março de 2010, a comunidade internacional ficou aturdida ao tomar conhecimento dos horrores que se passavam nas unidades prisionais do Estado.


As denúncias deixaram um rastro de morte, dor e suplício, que tornaram as unidades prisionais do Espírito Santo conhecidas pela alcunha de “Masmorras de Hartung”, tais foram as “práticas medievais” adotadas no sistema prisional com a complacência do governo do Estado.

A repercussão dos casos de violações de direito no Espírito Santo foi tão retumbante que chegou a desestabilizar o governo Hartung, que até então parecia inabalável. Depois que o escândalo se internacionalizou e a pressão chegou ao governo federal, acreditava-se que o governador Paulo Hartung entregaria a cabeça do então secretário de Justiça Ângelo Roncalli à sociedade como resposta, mesmo que simbólica, ao funesto episódio.

Para surpresa dos que apostavam que essa seria a saída mais lógica e racional a ser tomada pelo governador, Roncalli, contrariando as expectativas, foi mantido no cargo. Imediatamente, pairou no ar um enigma: qual seria o trunfo que Roncalli escondia na manga capaz de blindá-lo de um escândalo sem precedentes no governo Hartung?

O governo Hartung acabou e o enigma não foi decifrado. Mas a maior surpresa viria com a eleição do governador Renato Casagrande que, tão logo assumiu, anunciou que manteria Roncalli à frente da Secretaria de Justiça. Nesse momento as pessoas se atentaram que o valor da carta do secretário era bem mais alto do que se imaginava. A decisão de Casagrande pegou de surpresa a opinião pública, que apostava que o governador fosse romper de vez com as “Masmorras de Hartung”, dando mostras de que o novo governo queria pôr fim ao ciclo de violações que manchou a história recente do Estado.

A decisão de Casagrande de manter Roncalli só fez aumentar as especulações em torno do enigma que, só será decifrado se um dia as instituições de direito – Ministério Público Estadual, Tribunal de Contas do Estado e Assembleia Legislativa - tiverem “vontade” e “coragem” de investigar os contratos, muitos sem licitação, que a Sejus celebrou nos últimos anos em nome da reconstrução do sistema prisional.

Durante os oito anos do governo Hartung foram construídas 23 unidades prisionais, que custaram cerca de meio bilhão de reais ao Estado – média de R$ 22 milhões por unidade. Além dos contratos milionários com a DM Construções, que amealhou grande parte dos contratos, a Sejus passou a terceirizar a administração das unidades a partir de um sistema de cogestão, que se tornou um negócio extremamente lucrativo. Atualmente, três empresas administram sete presídios.

A terceirização do sistema prisional está sendo intermediada por três coronéis reformados, que prestam consultoria às três empresa que administram cinco penitenciárias e dois Centros de Detenção Provisória. Todos os coronéis, não por coincidência, ocuparam altos cargos nas secretarias de Justiça e Segurança, de subsecretário a secretário.

No sistema de loteamento das unidades prisionais do Estado, o coronel PM Jose Nivaldo Campos Vieira (foto) é quem está, vamos dizer assim, com a “área nobre” do sistema. Nivaldo, que é associado ao empresário Pedro Delfino, é dono da SEI – Segurança e Inteligência e fornece consultoria ao Instituto Nacional de Administração Prisional (Inap) no Estado – empresa curitibana pioneira em terceirização de presídios no Brasil.

O Inap controla o Presídio de Segurança Máxima I de Viana, Penitenciária Regional de Colatina e os Centros de Detenção Provisória da Serra e de Guarapari. Nivaldo é considerado o homem forte da terceirização e possui ligações estreitas com o secretário Ângelo Roncalli há anos.

O coronel, que durante o governo José Ignácio Ferreira ocupava a Subsecretaria de Justiça para Assuntos do Sistema Penal, já mantinha boas relações com a família Hartung. Nivaldo estudou teologia com a mulher de Hartung, Cristina Gomes, e teria se aproximada ainda mais da família nessa época.

Logo depois que assumiu o governo, Hartung reconheceu a importância da amizade selada com o coronel, e o nomeou secretário-chefe da Casa Militar. Em julho de 2005, o governo do Estado, logo após inaugurar a Penitenciária de Colatina, com capacidade para 300 vagas, entregou a administração da unidade ao Inap. Pelo contrato de cogestão, a terceirizada ficaria encarregada de arcar com os custos, a partir de repasses do governo, para aquisição, instalação e manutenção de equipamentos de segurança, uniformes (agentes, internos e funcionários), fornecimento de colchões, roupas de cama, kits de higiene, alimentação e serviços de apoio à cozinha, instalação de uma estrutura para atendimento médico, odontológico e enfermaria.

Em 2007, o Inap passou a administrar também o Presídio de Segurança Máxima I, em Viana, com capacidade para 500 presos. A cada novo contrato de terceirização fechado com o governo, os empresários percebiam que a construção de novas unidades abria um mercado promissor para a terceirização do sistema.

                                                                                                                                Foto: Thiago Guimarães/Secom
Tão logo o negócio se tornou uma mina de ouro, outro coronel reformado da PM se apresentou para intermediar os contratos de terceirização das penitenciárias Feminina e Regional de Cachoeiro de Itapemirim. O coronel reformado Edson do Carmo Ribeiro, ligado à empresa Monte Sinos, também ocupou cargos estratégicos no governo antes de partir para a área de consultoria.

O coronel, que foi secretário de Segurança do governo Zé Ignácio, sempre manteve boas relações com Roncalli e Hartung. No governo Hartung, Edson Ribeiro assumiu a Subsecretária de Assuntos Administrativos da Sejus, antes de se tornar consultor. O coronel divide seu precioso tempo de consultor com o processo que responde na Justiça. Em 2001, a Secretaria de Segurança, sob o comando do coronel, criou o programa PROS-PAS e contratou a Fundação Ceciliano Abel de Almeida para treinar 2.695 policiais, um total de 77 turmas. Porém, a prestação de contas informou que apenas 1.840 foram treinados (54 turmas), mas o valor do curso foi pago integralmente: R$ 630 mil. Edson Ribeiro do Carmo é acusado pelo Ministério Público Federal (MPF) por improbidade administrativa e desvio de dinheiro público.

As duas unidades administradas pela Monte Sinos foram inauguradas em 2008 e tem capacidade para abrigar 604 internos - 430 homens e 174 mulheres.

O mais novo consultor do mercado de segurança é o coronel do Exército José Otávio Gonçalves, que deixou a Subsecretária de Assuntos do Sistema Penal em maio do ano passado. Na carta de despedida, o coronel agradeceu especialmente ao secretário de Justiça Ângelo Roncalli e ao governador Paulo Hartung, deixando claro que queria manter as portas abertas com o governo. Conseguiu. Em junho do mesmo ano, a Sejus abriu um aviso de licitação para terceirizar a administração da Penitenciária Regional de São Mateus (norte do Estado). O novo consultor teve sucesso na sua primeira intermediação.

A licitação foi vencida pela empresa Reviver. Em março de 2010, portanto antes do processo de licitação, a empresa nordestina fora denunciada ao Ministério Público Federal por violações dos direitos humanos, além de tortura e maus tratos dos presos da unidade de Serrinha, no interior da Bahia.

No final de julho deste ano, a Reviver também foi denunciada por familiares de presos que estão cumprindo pena na unidade de São Mateus. A uma rádio comunitária do município, os familiares revelaram que os presos têm sofrido torturas por parte dos agentes de controle da empresa terceirizada. Entre as violações, os presos reclamam de cacos de vidros misturados à comida. O secretário justificou que visitou a unidade em não viu, como sempre, nada de anormal.

A empresa que faz a gestão da unidade capixaba, também foi acusada de corrupção na Bahia. A Reviver é suspeita de emitir notas fiscais fraudadas e de desligar o fornecimento de energia elétrica e de água para diminuir os gastos mensais na unidade baiana.

Os mesmos indícios de corrupção também são denunciados nas sete unidades capixabas terceirizadas. Diretores de unidades, que fazem a cogestão com as terceirizadas, reclamam que as empresas, invariavelmente, não cumprem os contratos à risca para diminuir gastos. São freqüentes as reclamações dos diretores que se queixam do número reduzido de agentes, falta de material de higiene pessoal destinado aos presos e do precário atendimento dos serviços de saúde que deveriam ser supridos pela terceirizada.

Os relatórios encaminhados à Sejus, geralmente param nas gavetas dos assessores de Roncalli, que faz vistas grossas às irregularidades. Um diretor de unidade, que não quis se identificar, afirmou que pelo menos quatro diretores que “quebraram” a hierarquia e decidiram relatar as irregularidades ao Ministério Público Estadual, foram demitidos. Com medo, os diretores que são agentes penitenciários comissionados para o cargo de direção, acabam “engolindo” as denúncias e convivendo com as irregularidades das terceirizadas.

De acordo com relatos de fontes ligadas à Sejus, as empresas tentam economizar de todas as maneiras para haver sobras no final do mês. “As terceirizadas só adotam esse expediente porque sabem que os contratos não serão auditados pelo Tribunal de Contas e nem tampouco haverá fiscalização ou cobranças acintosos por parte da Sejus e dos representantes do Ministério Público Estadual ou das Varas de Execuções Penais, que deveriam inspecionar o trabalho dessas empresas”, segreda a fonte.

Um relatório encaminhado à Direção de Inspeção e Controle de Unidades, de junho deste ano, revela também que o trabalho das terceirizadas, diferentemente do que tem propagandeado o secretário Roncalli, é recheado de falhas. O relatório chama atenção para o fato de os agentes de controle da Inap trocarem insultos e xingamentos com os presos, “fazendo com que o controle e disciplina fique sensível, propiciando um ambiente inseguro e sem controle”. O documento ainda acrescenta que a Penitenciária de Segurança Máxima I, em Viana, “encontra-se sem procedimento, não sendo possível sequer identificar os presos que se encontram em suas respectivas celas de forma nominal”.

Licitação 

O processo de terceirização da Penitenciária de São Mateus traz outra curiosidade intrigante. Em maio de 2010, quando a licitação foi aberta, a Sejus estabeleceu a concorrência por menor valor. Fixando o teto mensal de repasse de R$ 1.140.789,50 para 534 internos. Pelo valor do contrato, que normalmente sofre aditivos no decorrer da vigência, cada preso, em média, custaria ao Estado R$ 2.136,00. Apenas a Monte Sinos, o Inap e a Reviver participaram da licitação. Curiosamente, a Reviver apresentou a proposta de R$ 1.139.726,45, ou seja, R$ 1.063,05 abaixo do teto. As outras duas, contrariando o bom senso – uma vez que a licitação considerava o menor valor -, apresentaram valores bem acima do parâmetro definido pela Sejus. A Monte Sinos apresentou a proposta de R$ 250 mil acima do teto, já a proposta do Inap ultrapassou o valor máximo em R$ 459 mil. Resultado, as duas empresas foram desclassificadas e a Revivar arrematou o contrato anual de mais de R$ 13 milhões com a Sejus.


Na próxima reportagem da série “Os Coronéis de Roncalli”, o secretário de Justiça, uma juíza e um deputado estadual se lançam como “garotos propaganda” do Inap.

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