NAS CURVAS DA ESTRADA

Um feriado no Brasil mata tanto quanto uma guerra civil na Líbia. E isso parece normal

Leonardo Attuch, da redação de Isto É

“Se você pretende saber quem eu sou, eu posso lhe dizer. Entre no meu carro e, na estrada de Santos, você vai me conhecer.” Roberto Carlos é um gênio. Só mesmo ele para captar a mais brasileira das verdades antropológicas. É na direção que homens e mulheres se revelam por inteiro. E o rei, na canção imortalizada por Elis Regina, confessava: “Só a velocidade anda junto a mim.” Ele pisava mais fundo, corrigia num segundo, pois não podia parar. Sua transgressão era justificada por uma angústia existencial, um amor perdido. Quem há de ser contra?

No Carnaval deste ano, tudo foi tão previsível quanto a batida de um samba-enredo. No Rio, a escola Beija-Flor, que rendeu homenagens ao rei Roberto, foi novamente a campeã dos desfiles. Nas rodovias federais, a carnificina de sempre. Num balanço parcial, 4.165 acidentes, 3.124 pessoas alcoolizadas e 213 mortes – um número 32% maior do que o do ano
anterior. Um feriado prolongado no Brasil mata tanto quanto uma guerra civil na Líbia. E isso parece tão normal e repetitivo quanto o dia e a noite. Apenas uma estatística a mais, num país conformado com tantas vidas ceifadas prematuramente.

Qual a razão de tudo isso? No mundo físico, a causa principal é uma só: a combinação entre álcool e direção. Mas, no plano metafísico, há uma raiz mais profunda. O brasileiro é essencialmente um transgressor. E, como ensina o antropólogo Roberto Damatta, autor do livro “Fé em Deus e Pé na Tábua”, o motorista daqui se considera aristocrático no trânsito. Quem é superior, diz ele, não obedece nem se subordina às regras. Toma sua cervejinha, agride os pedestres, tem um esquema próprio para transferir suas multas e, quando parado numa blitz qualquer, oferece um “café” ao policial rodoviário. E, mesmo em casos absurdos, como o do “monstrorista” gaúcho que atropelou dezenas de ciclistas, sempre surge uma explicação: ele se sentia ameaçado pelas bicicletas.

Três anos atrás, o Brasil parecia pronto para um salto civilizatório, quando discutiu e aprovou uma nova Lei Seca, que criminalizava motoristas alcoolizados. O curioso é que poucas leis foram tão combatidas no País. Dizia-se que bares e restaurantes fechariam e que senhoras seriam presas se comessem um inofensivo bombom de licor. Nada disso aconteceu. Durante algumas semanas, houve até algum avanço, que durou apenas enquanto existiu alguma fiscalização. Quando o brasileiro se deu conta de que os bafômetros haviam saído de cena, caiu de novo na folia. E o resultado está aí: 213 mortes, numa festa cada vez menos autêntica e mais pasteurizada, sob o patrocínio das grandes cervejarias. Se dirigir, não beba. Mas, como diz o rei Roberto Carlos, ainda assim eu “corro demais, sofro demais, corro demais”. 

Comentário: engraçadinho, o autor do texto. Parece que não quer dar nome a todos os bois culpados pela carnificina das estradas porque alguns dos bois estão aboletados no Poder. Talvez o rabinho dele esteja preso na porta de algum cofre público. Não resta dúvida que a combinação de álcool e direção ainda é responsável por boa parte dos acidentes automobilísticos e que a fiscalização nesse sentido tem deixado muito a desejar. Mas creditar somente a esse fator a imensa tragédia que se abate sobre milhares de famílias brasileiras soa como indisfarçável má-fé. Basta lembrar as condições da malha viária nacional. Quem viaja por elas entende bem o que digo. E quem lê, ouve e assiste os noticiários, também. Ora, por mais sóbrio que se esteja, muitas vezes é a pura sorte que nos livra do pior quando trafegamos pelo descaso, corrupção e sei mais o quê espelhado nas mal traçadas e sinalizadas linhas das esburacadas rodovias do País. E não adianta reclamar, pois além de não sermos ouvidos, ainda corre-se o risco de tomar um coice de algo como Helio Bahia, todo-poderoso do DNIT aqui no Estado e Senhor da Morte nas estradas capixabas. Portanto, Leonardo Attuch, no próximo artigo que você escrever, seja qual assunto queira abordar, seja mais honesto com seu leitor para que conserve algum crédito junto a ele. Dessa vez não conseguiu enganar ninguém, pela obviedade ululante de não caber apenas a má educação do motorista brasileiro como única culpada na história dos desastres de carro. Deveria ter incluído os outros bois.